Café, cigarros e estrelas

O tempo podia passar, mas o encantamento era o mesmo desde o primeiro dia que nos vimos. Naquela sala de aula da universidade, com cadeiras duras, que maltratavam nossas costas durante as quatro horas de aulas que tínhamos todas as noites entre aquelas paredes amareladas com o tempo e as janelas de vidro colorido. A barba nunca feita, o sorriso de garoto, a voz de homem, o aperto de mão de menino e as convicções de um velho de setenta anos.
Todos da sala apostavam em nós. Mas eu sou um alvo errante, ou um míssil errante. A gente nunca estaria junto como a turma imaginava.
Passávamos praticamente o dia conversando. Exceto pelas manhãs. Você tinha a sorte de poder dormir de manhã. Eu não, tinha que trabalhar. A tarde já nos encontrávamos na universidade, você com seu café, eu com meus cigarros que te aborreciam. E toda a turma feliz por estarmos juntos conversando. Mal sabiam eles que estávamos discutindo alguma teoria, ou falando de música, de nossas viagens... No fundo, éramos dois velhos conversando.
Na sala de aula, cada um de um lado da sala. Era nossa Guerra Fria. Eu a comunista de boutique, você o capitalista disfarçado. Até que as aulas eram animadas quando você estava presente. Eu tinha alguem a minha altura para rebater minhas bobagens acadêmicas. Mas você raramente rebatia. Ao menos não em sala de aula. Parecia aguardar sempre as madrugadas. Preparava o café, as cadeiras na varanda, o cinzeiro pra mim, os livros para comprovar. Preparava o campo de guerra.
Era uma batalha perdida pra mim. Mas ainda assim eu sacrificava algumas horas de sono, feito mãe zelosa a cuidar do filho doente. Atravessava algumas ruas, entrava pela garagem, pisava na grama macia ja molhada pelo orvalho da madrugada. Sentava na minha cadeira, acendia o cigarro e esperava você vir com o café. As noites daquele verão ajudavam. As estrelas nos assistiam. Conversas amenas, debates ferozes, silêncios confortáveis.
Aquelas horas a menos de sono ficaram marcadas nas minhas olheiras.
Agora você tem outra pessoa. Ja não senta mais na varanda, ja não tem mais horário desregulado de sono, já não bebe tanto café, fez a barba, usa sapatos social, o sorriso mudou, os ombros estão caídos, os olhos abatidos e o aperto de mão é desconfiado.
Hoje minhas madrugadas continuam as mesmas: café, cigarros e estrelas. As vezes tenho sorte de encontrar alguem pra conversar, mas ninguém consegue ser tão rabugento quanto você.

This entry was posted in . Bookmark the permalink.

1 Response to Café, cigarros e estrelas

  1. Uau... senti tanta verdade nisso. Aquela velha encruzilhada de que não adianta ficar remoendo as coisas, mas que é impossível apagar boas lembranças...

    Acho que no fundo, elas (as lembranças) pertencem ao tempo-espaço e não a nós...